"Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a minha historia sem vida. São as minhas confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer." Bernardo Soares

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quarta-feira, 15 de julho de 2009

DANUZA LEÃO

Não há nada que me deixe mais frustradado que pedir sorvete de sobremesa,
contar os minutos até ele chegare aí ver o garçom colocar na minha frente
uma bolinha minúscula do meu sorvete preferido.
Uma só.Quanto mais sofisticado o restaurante,
menor a porção da sobremesa.
Aí a vontade que dá é de passar numa loja de conveniência,
comprar um litro de sorvete bem cremoso
e saborear em casa com direito a repetir quantas
vezes a gente quiser,
sem pensar em calorias,
boas maneiras ou moderação.

O sorvete é só um exemplo do que tem sido nosso cotidiano.
A vida anda cheia de meias porções,
de prazeres meia-boca,de aventuras pela metade.
A gente sai pra jantar, mas come pouco.
Vai à festa de casamento, mas resiste aos bombons.

Conquista a chamada liberdade sexual,
mas tem que fingir que é difícil
(a imensa maioria das mulherescontinua com pavor de ser rotulada de 'fácil').
Adora tomar um banho demorado,
mas se contém pra não desperdiçar os recursos do planeta.
Quer beijar aquele cara 20 anos mais novo,
mas tem medo de fazer papel ridículo.
Tem vontade de ficar em casa vendo um DVD,
esparramada no sofá,mas se obriga a ir malhar.
E por aí vai.
Tantos deveres,
tanta preocupação em 'acertar',
tanto empenho em passar na vida sem pegar recuperação...
Aí a vida vai ficando sem tempero,
politicamente corretae existencialmente sem-graça,
enquanto a gente vai ficando melancolicamentesem tesão...

Às vezes dá vontade de fazer tudo 'errado'.
Deixar de lado a régua,o compasso,a bússola,a balançae os 10 mandamentos.
Ser ridícula, inadequada, incoerente
e não estar nem aí pro que dizem e o que pensam a nosso respeito...
Recusar prazeres incompletos e meias porções.
Até Santo Agostinho,
que foi santo, uma vez se rebeloue disse uma frase mais ou menos assim:
'Deus, dai-me continência e castidade, mas não agora'....
Nós, que não aspiramos
à santidade e estamos aqui de passagem,podemos (devemos?)
desejarvárias bolas de sorvete,
bombons de muitos sabores,
vários beijos bem dados,
a água batendo sem pressa no corpo,
o coração saciado.
Um dia a gente cria juízo.Um dia.
Não tem que ser agora.
Por isso, garçom, por favor,me traga:
cinco bolas de sorvete de chocolate,
um sofá pra eu ver 10 episódios do 'Law and Order',
uma caixa de trufas bem maciase o Richard Gere,
nu,embrulhado pra presente.OK?
Não necessariamente nessa ordem.

Depois a gente vê como é que faz pra consertar o estrago . . .

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